sexta-feira, 30 de maio de 2008

Carta de um louco


Querido(a) Júlio(a),

Precisava de uns dias fora de mim próprio, o colete está muito apertado. Não podes mandar alguém para aliviar este sufoco, só um bocadinho? Prometo que não fujo. Até porque se está bem na minha cela, fora ser um bocado fria e cheirar a mofo. Hoje esteve sol, e passei o dia sentado debaixo da janela, onde os raios batem com mais intensidade. Soube bem.


Agradecia também se tivesses por aí alguns soporíferos, daqueles que duram uns anos. São os zumbidos, aqueles zumbidos horríveis, mantém-me horas acordado. E a aranha do tecto teceu-me na almofada a frase “Não consigo dormir” a letras vermelhas. Ficou um bonito bordado, mas não está a ajudar nada e não quero que ela se sinta mal. Ontem pensei em matá-la. Sabes, se não gostasse tanto de a ouvir, já o tinha feito.


A goteira continua no centro da cela e recomenda-se. Há dias em que faz música linda – há bocado escrevi uma canção a ouvi-la e a acompanhar com a voz. Não canto bem, mas o que conta são as palavras. Mando-te a letra em anexo. Depois diz se gostas.


Outra coisa – nunca mais vi aquela mulher linda que vinha cá visitar-me de vez em quando. Ela contava histórias tão engraçadas, eu passava horas a ouvi-la e mais horas a pensar nas coisas que ela dizia e na forma como mexia os lábios e as mãos. Outro dia, enviei-lhe uma carta a pedi-la em casamento, e ela respondeu que se fosse louca, aceitaria. Podes dizer-me como enlouquecer uma pessoa? Eu sei que o segredo é a alma do negócio, mas podias abrir uma excepção de vez em quando. Tens que vir cá conhecê-la um dia em que ela apareça, tenho a certeza que me compreenderias. Mas não ma roubes. Ela é bonita demais para mim, mas tu nunca a entenderias como eu. E além disso, também não és o auge da beleza.

Enfim, aguardo resposta. Mas não demores como das outras vezes. Senão, já sabes como eu sou: começo a dar em doido.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Self - Portrait


Há coisas que, mais do que não entender, não fui definitivamente feita para entender. Porque é que as balanças são o objecto mais absurdo que existe se nunca há equilíbrio em nenhuma parte do mundo. Estendes-me as mãos. Apago o cigarro. Tenho veias e escrevo.
Existem dois tipos de pessoas, agrupadas segundo os elogios concretizados em horas de chuva e pedra e terra ou fogo para cima dos corpos. Existem dois tipos de cadáveres e não há outra maneira de dizer isto a não ser dizê-lo. Temos os mortos anorécticos e os bulímicos que morrem.
Existe uma constante ligação entre a comida e as palavras. Eu como palavras, tu comes palavras, ele não sei o que faz, mas de certeza que come palavras. Fora os anorécticos, comemos todos palavras. Não é uma ligação estreita, mas uma daquelas relações que dois estranhos têm ao tocarem-se todos os dias no mesmo caminho para o mesmo trabalho, sempre os mesmos, sem se falarem. Não deixa de ser uma relação.

Então nós ouvimos : Fulano deixou-nos hoje, com falta de palavras no estômago porque tinha a visão turva e achava que falava demais, deixando de falar tanto para que gostassem mais dele. Calou-se num dia, depois à noite também e, quando deu por ele, a língua já se enrolava de cada vez que se queria fazer à vida. Nunca procurou ajuda nem sabia linguagem gestual. Preferia morrer a dizer o que sentia. Morreu e deixa saudades.

Então nós ouvimos : Sincrano deixou-nos hoje, com imensas palavras que deitou ao mundo em horas erradas e silêncios indiscretos, porque não aguentou e encheu o que queria e não queria com letras que não as da sopa dentro de si , até vomitá-las quando calhou e sentir-se aliviado. Tornou-se um vício, uma doença e uma qualquer noção de bem - estar doentio. Preferia morrer a calar-se ou a falar quando lhe pediam, porque a sua noção de liberdade tinha a ver com as palavras e não com o pão ou com o voto. Morreu, deixa saudades em alguns.

Então eu penso, finalmente: que me faltam palavras constantemente para me exprimir perfeitamente e muitas vezes o que escrevo mal e porcamente me torna uma cadáver sem definição pré- definida. Efectivamente. Mas depois acontece que não páro de pensar e encontro soluções num frigorífico perto de mim, como o anúncio daquele filme em que se conta os dias até à sua estreia. Subitamente, sei porque como demais. É naquela relação de estranhos que está toda a minha noção de inspiração deficiente. Mal por mal, escrevo até conseguir encaixe.

(Imagem : Vincent van Gogh, Esqueleto fumando um cigarro, 1886)

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Apatia


Nada a declarar. Tudo a esconder. Caem cometas e todos se abrigam – sobro eu para os observar, sem medo nem fascínio. Ando pelas ruas e os estrondos ensurdecem os ouvidos mais sensíveis. Não os meus.

Quem me viu e quem te vê. Chovem cartas mas não me apetece ler, nem para tirar uma ideia para este texto nem para perceber o que se passa com a vida. Há coisas que não me apetece saber. Tipo todas. Deixa andar. Deixa viver, deixa sofrer, deixa rir e chorar. Não me macem. Ou macem, se quiserem. Ou marquem. Ou matem.

Chove dinheiro. Caem notas e todos saem à rua – sobro eu como o falido, sem perspectivas nem ambição. Ando pelas ruas e os gritos são avassaladores para as mentes mais despertas. Não a minha.

Quem te viu e quem me vê. Onde é que já vi isto? Cantam-se baladas românticas e eu que não as oiça, porque sabe-se lá em que bocas já andaram. Há coisas que nunca cantarei. Tipo todas. Deixa estar. Estou bem assim. Vai morrer longe. Ou vem viver perto. Tanto se me dá como se me deu. Já dei tanto que dei demais, e acho que não dá. Também não preciso que me dêem nada, nem que me dêem a ninguém. Dêem-me só um tempo, e talvez me junte ao senhor do acordeão que vagueia pelos metros do mundo, a agarrar o copo para que deitem as esmolas do fundo poeirento da carteira rompida. E ao leitor, peço desculpa. Porque um texto sobre seca é uma seca de texto. Mas que não se preocupe ninguém, pois aceitei o desafio de escrever sobre apatia, e enquanto o meu tema for este, vou eu morrer longe.

Um abraço muito forte, e até breve, esperemos. Mas também não me interessa muito.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Tocar-te os olhos


Lembro-me que tinha tudo tão bem planeado : casava-me com ele, ficava rica e depois matava-me. Parecia a vida perfeita, ou melhor, planos por planeados, dizia eu que era o melhor que se podia arranjar. Vida perfeita, dizia eu.

Casava-me com ele porque nunca me quis casar. Mas sem saber se amei antes ou depois dele, após o seu quarto pedido de casamento atrapalhado no meio de muito álcool e juventude, lembro-me que desde que eu fui eu aqui, pela primeira vez, eu hesitei. Bebi tudo de um gole e respondi "Só se for já". E ele contratou o barman como padre e as estrelas como testemunhas. Diz que pagou-lhes a palavra, juramento safírico e para toda a vida. Depois, nos outros pedidos todos, aprendi a rir-me como se deve rir quando um bêbado se nos declara a meio do caminho. Para dentro.

Ficava rica porque nós tínhamos sonhos, ou como amava acariciar, éramos sonhos com muitos aplausos para saborear. Não se tira a razão aos loucos, entendam-me, eu até era o que ele quisesse e ele era o meu sonho, desde que a realidade não me doesse. Nós éramos sonhos, éramos o novo Colombo e o Gama (Mas as terras já cá estão! - E as Luas? E os lobos?). Ele ria-se e dizia-me que chorava. Nunca, nunca o vi chorar, sem ser daquela vez em que o mundo era a preto e branco e nós ficámos inevitavelmente pedra. E também da outra em que lhe apeteceu, porque era feriado e então podemos fazer tudo menos comer carne.

Depois, se bem me lembro, morria no auge da felicidade para morrer feliz. Queria que ele continuasse mais rico e feliz, comigo perfeita no tecido do meu vestido branco e para sempre, com a mancha vermelha dos lábios dele no meu batom.

Hoje, porque é muito tarde ou talvez porque mais cedo ou mais tarde sabem-se estas coisas, sei que me casei com ele, até que a morte nos separe. E tive a maior riqueza do mundo em poder tocar os olhos dele.
Mas hoje é hoje e a verdade sobe. Adeus ao brilho e ao arrepio espinal. Porque já nem chorar te sei, porque o que não sei é sentir.

sábado, 17 de maio de 2008

My Gift


Como e bebo, mas não é disso me alimento. Fumo e respiro, mas não é isso que me droga. E há um vaivém de palavras lindas e vozes harmoniosas que me dão e sempre darão sentido a tudo. Adorava poder agradecer com mais de um sorriso, mas ainda estou na fase de tentar chegar a esse sorriso. Esperem , falta só mais um bocadinho. Porque todos me arrombaram a vida e não há ninguém que me assalte o coração e leve tudo, não deixando ficar nada pelo que chorar. E fascinam-me os diálogos perdidos pelo ar, as palavras que uns ouvem e outros não, o luto misturado com a alegria de viver, os beijos às escondidas (num quarto às escuras ou numa mente poeirenta), os bens materiais, a comida deliciosa, as águas do sonho e as cadeiras do pensamento. Tudo isto debaixo de duas ou três estrelas, porque nós roubámos as outras e temo-las no bolso para distribuir por aqueles que nos amam, mesmo sabendo que isso não chega. E adoro-vos, amo-vos a todos, preciso de vocês como o piano precisa de dedos que o tornem belo, agradeço cada dia que passa e odeio não poder chegar com uma bandeja de sonhos com duas velas em cima para cada um, sem pedir nada em troca. Já não consigo dar o coração pela boca, fico-me pelas letras.
Cubram-me de serpentinas e não se preocupem que sorrirei.
Construam-me a vida e não me perguntem se prefiro uma recta ou uma encruzilhada. Eu seguir-vos-ia até ao fim do mundo.


“Comforting home, Mother’s lap, chance for immortality
Where being wanted became a thrill I never knew
The sweet piano writing down my life.

Teach me passion, for I fear it’s gone
Show me love, hold the lorn
So much more I wanted to give to the ones who love me
I’m sorry.
(…)And you… I wish I didn’t feel for you anymore.”


Tuomas Holopainen, in Dead Boy’s Poem

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Pontilhismo

Ele mexe-lhe nos cabelos e sorri.

- Minha louca, como é que é possível? ...como- é- que- é- possível, diz-me.
- O quê?
- Como é possível saberes as coisas todas e de repente, desaprenderes-las?

Ela retribui o sorriso na primeira frase e depois desabafa amarga para um ponto abstracto do canto da sala.

- Tu não és justo... nunca cá estiveste. Nunca quando eu gritei só pelo teu nome, porque era o único que sabia de cor, e só haviam desculpas por todo o lado. Primeiro desculpas com desculpas e depois a palavra no singular, sem mais nada, ponto final. Desculpa no tablier do carro, desculpa no livro oferecido há dois anos, desculpa no Tu não percebes que eu só quero arranjar desculpa. Nunca cá estiveste quando eu dizia a toda a gente, Vocês não o conhecem, ele é bonzinho, ri-se quando eu falo de estrelas e nunca me faz perguntas desnecessárias, se eu estou bem, se como tudo, há quantas noites não durmo ou porque é que não paro de tremer. Ele não tem medos, disse-lhes eu, até me aperceber que eu era o único deles. Até eu começar a perceber o que dizia. Tu és tão injusto que nem te dás conta do quão alguma vez o foste.

Entretanto ele fica sério e permanece a olhar para ela. Depois olha pela janela e pergunta:

- Continuo sem perceber como é possível.
- Nem eu. Como é que é possível um sentimento ser para toda a vida e nunca mais acontecer? Morrer assim, aos pedaços e nunca mais aparecer, nem sequer em sonhos? Esquecer-me de mim e depois encontrar-me, mas para isso, ter de me esquecer de mim?
- Porque é que me dizes isso tudo agora?
- Porque tenho medo.
- Já não te lembras como é, pois não?
...
- Odeio-te. Boa noite.
(Imagem do Filme Uma canção de Amor)

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Receita


Mexa a vida numa taça pequena , depois de lhe adicionar um pouco de tensão e açúcar, para acentuar o sabor. É difícil ser inteligente tendo tanta coisa no pensamento, por isso ponha uma chávena à parte para devaneios , e guarde-os para mais tarde.

Entretanto , anote num bloco o que pensa do dia presente e retire uma pauta do bolso para escrever a sua sinfonia, só para o caso de ensurdecer um dia. Junte tudo e deixe arrefecer á temperatura do Tempo. Enquanto isso, saia à rua. Procure um desejo carnal e um beijo perdido, leve para casa e plante o amor à luz da lua. Aguarde duas ou três etrernidades, até florescer.


Entretanto, ponha a mesa para uma pessoa - copo de cristal azul, pratos de porcelana gravados de poemas antigos e talheres de prata brilhante, tudo numa toalha de seda branca. Debaixo dela, ponha o crucifixo. Enquanto espera que fique pronto, escreva um romance, um poema, uma crónica, uma peça de teatro ou uma carta para alguém que já não veja há muito. Depois volte à mistura que deixou e adicione as lágrimas. Junte passos para o abismo a seu gosto. Deixe cozer o tempo que for preciso.


Quando pronto, meta numa travessa comprida, entre 80 a 100 anos, e espalhe bem.
Sirva frio, como se fosse vingança.

Bom apetite.

domingo, 11 de maio de 2008

O Escafandro e a Papa desejada


Esta é pela avó que amas. Esta pelo teu pai, que bate e bate e não causa dor. Esta, pela mamã do colo e da tabuada. Esta é por mim.

O coração tem muitas funções. Pulsa como um pulso, ouve como um ouvido, cheira e soluça e dá um belo animal de estimação. Precisa de colo e lava-se a 360º de preferência, para que a coisa não mude muito. Cala-se quando se sente calado, fala e fala muito, quando não se consegue calar. Ás vezes admira pedras como quem admira as cópias das telas do Gauguin ou do Soutine e sente sangue, carcaças de sangue à sua volta que precisam desesperadamente dele e que o fazem sentir que é amor que deveras sente. Adora ver comédias românticas e filmes de terror, daqueles cardíacos com boa companhia. Ri-se quando está nervoso e até chora, se lhe pedires com muita força. Quando à dor, sente-a perto da morte e quando o partem, com o intuito de dar para muitas colheradas, à boca de quem mais ama e que não o ama, nem hoje, nem ontem, nem quem sabe nunca amanhã.

Pensei que te fizesse falta um destes, que eu sei que tens fome. Por mais que não digas, tu queres tão mais que não sabes fazer-te bem, esqueceste do que é seres novo e ainda te gozas, com a dificuldade de mastigar a verdade. Esta é por mim, vá lá que é a última. Fica o resto no frigorífico, para quando te apetecer.
(Imagem do filme O Escafandro e a Borboleta)

sábado, 10 de maio de 2008

Arcada


Era cedo. Ele vagueava pelas ruas perto de casa. Muito perto de casa. Sim, que a comida da Mãe é boa e cá fora todos nos envenenam. Ah, e ele só costumava pisar víboras.
Quando deambulamos muito pelo mesmo sítio, conhecemos-lhe os cantos e as arcadas, mas foi com um novo sítio que ele se deparou. Era um café que nunca tinha visto antes, com esplanada e vidraças. Curioso, entrou. Lá dentro, o cheiro a novidade invadiu-lhe as narinas, e os sorrisos de boas vindas encheram-lhe os olhos. Agradável. A senhora do balcão parecia investigá-lo como quem está à espera de determinado pedido ou atitude, predefinido, normal e tão fácil de satisfazer quanto possível. Ele avançou e pediu um café, ao que a senhora sorriu, apressando-se a mexer na máquina.

- Normal?
- Sim, se faz favor. Haja algo.
- Ora aqui tem. - (Sorriso.)
-Obrigado.
- Tem os olhos bonitos.
- E o coração aos pedaços. Quanto é?
- Deixe lá isso. É o nosso primeiro cliente. Dia de abertura, oferta da casa.

Foi sorvendo o café ao balcão. Quente, escuro, forte. Havia esplanada, mas ali estava-se menos-mal. Dia de abertura. Já tinha tido tantos dias de abertura na sua vida, e acabou sempre por fechar as portas pouco tempo depois, mesmo com ofertas da casa. Teve vontade de dizer à senhora que não ia resultar, que ele sabia, que com ele pelo menos o dia de abertura era um lançamento de foguetes antes da festa que nunca viria. Mas não, para quê, se esta senhora ia ter sorte? Estava escrito nos olhos dela, estava um forte trago a sucesso no café. E talvez ele também o tivesse, ou viesse a ter, por estar ali, por ser o primeiro. Talvez o derradeiro dia de abertura fosse hoje. E porque não? Ou porque sim? Terminou. Pousou a chávena.

- Obrigado. E parabéns pela abertura.
- Obrigada eu. Volte sempre.
- Hei de voltar, sim. Um bom dia.
- Se voltar hoje, ainda lhe ofereço outro.

De graça, até injecções na testa; já diz o povo.
Eu às vezes pagaria por uma.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Unhas de Papel


Achei estranho que não me perguntasse pelos jeans russos e apertados nos bolsos ou pelo tom abaixo ou acima do vermelho da minha blusa. É que, vejamos bem, eu não tenho cabelos lisos nem encaracolados, não tenho olhos castanhos nem verdes, não tenho muita nem pouca idade. Não tenho sede nem fome nos braços. E paciência e bilhete de identidade, não tenho.

Ele não me perguntou como eu era como se as coisas fossem somente o que tivessem de ser e nós fôssemos pó, pó que não quer deixar de pousar, por muito enquanto. Já gosto dele, por isto e não posso gostar, por coisa alguma. Incoerências do faz-de-conta da menina que cresceu.


- Olá ... tens lume?

- (procura nos bolsos e mala) Não, não encontro. Devo ter perdido. Desculpa.

- Emprestas-me o cigarro?

- (A beata do cigarro vai com o vento. Riso nervoso). Desculpa .... .... e agora?

- (Suspira ou inspira, liberdade do actor. Senta-se). Agora conhecemo-nos, conversamos e eu confesso-te no final da tarde que não fumo, que Pedi este cigarro porque te queria ver brilhar mais de perto. Que a tua insegurança é o mais bonito que tens no teu corpo e seres a menina do canto da sala, também. Que se conseguires abrir portas sem te pintares e gritares ilusionista a quem passe se quer casar com a carochinha, não há problemas de maior senão.

- Desculpa... olá, João. Filipa, muito prazer.


Não tenho rosas na mão nem anéis nos dedos. Não tenho pulseiras no tornozelo, tatuagens no pescoço, perfume fresco e frutado. Sou só (e) eu. (...) E ele acaba de chegar. Parece-me que conheço esta voz desde sempre. Não sei como ele é, mas é ele. Prilim-pim-pim. E acaba de me tocar no ombro esquerdo.


(Imagem do filme Le Fabuleux Destin d'Amélie)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Je vais te dire un secret


Às vezes gostava de te dizer que a minha vontade é beijar-te sem pensar em nada. Às vezes queria que o Amanhã não fosse real, para não ter de pensar no que viria após esse beijo. Talvez um dia não haja mesmo Amanhã, e eu possa libertar as palavras da boca cosida, e o sabor a nada da língua. E agora que penso, ironia das ironias, quem sabe se há mesmo um Amanhã, e se não ando a semear sonhos por terras inóspitas e inférteis.

Não precisas de me gritar que és real e que estás aqui. Sinto-o na pele a cada dia que passa - a rotina chicoteia-me, e as chagas urram por novas dores. Podíamos mudar a realidade num só gesto sentido, e talvez o novo mundo te agradasse. Ou talvez vivesses uma mentira. Pouco importa. Sou cobarde e estou submisso ao que tenho (ou que resta). Quero mudar tudo, mas não quero que nada mude.

Sei quem és, não te preocupes. Ou aliás, sei demasiado sobre ti, e sobre mim. E esqueço-me que há muita coisa que não sei, e que não queres saber. Rendo-me a isto - textos repletos de palavras que chegam para substituir lágrimas que não mudam nada. Melhor assim. Que se escreva o que não se consegue dizer. Que se trauteie o que não se consegue tocar no piano. Que se esqueça o que não se pode ter. Ainda assim, terminada cada peça, pertences-me. E nos sonhos mais idiotas, serás sempre minha.

Enlacemos as mãos. Não. Desenlacemos as mãos. Momento Ricardo Reis. Chato, irónico e cómico ao mesmo tempo. A alma entretida com a novela mais nonsense do Universo. Tristeza. Desperdício.
Arranja alguém e mata-me de uma vez.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Acidentes, Muitos



Ah, eu devia ter gritado.


Se fechamos o cadeado e engolimos a chave, não podemos esperar que nos encontrem. Não podemos esperar muito tempo até morrermos de fome de beijos, suor e lençol desfeito, disto e daquilo. Não podemos, é inevitável, como daquela vez em que te vi dois dias seguidos em lugares diferentes e não te agarrei e agora tudo isso me parece o desperdício da minha epifania amorosa, as minhas conversas com o Sr. Deus no tal canal sem audiências, este todo empertigado comigo que ele não é senhor, Sr. Arquitecto, atenção, e não tem culpa nenhuma que nós sejamos perfeitos engenheiros do mundo - que fazemos borrada atrás de borrada, que só nos apercebemos tarde demais. Que adiamos o prazo e entregamos tanta vez a coisa ao Deus dará. Por um qualquer motivo, o Sr. Deus parece-me esgaziado de hélio e serpentinas. E diz-me 'eu bem te avisei, eu bem te avisei...' . Não gosto de arquitectos; só quero amor e uma cabana. Ai, no meu tempo...




Olha, se queres que te diga tudo isto deve ter algum sentido. Jura. Não sejas sarcástico se ainda não me calei. Impossível andarmos para aqui às voltas e rotundas e não estacionarmos pelo menos para um acidentezinho que alegre o telejornal das oito. Eu queria ver o que era das velhotas sem os carros empilhados na estrada e elas empilhadas debaixo do edredon e no cachecol de tricot de cinco metros que decidiram oferecer ao neto gigante. Eu queria ver, o que era delas sem isso e sem a Alexandra Lencastre. Retomando, se isto tem algum sentido- e tu dizes que sim e eu anuo, porque sou boa nisso - é dar graças ao ar por não terem sido as mãos as lesadas e levadas de urgência para o quarto com dois números, com uma dezena e o segundo martelado e caído para baixo, ficando as pessoas sempre em tamanha dúvida se é aqui que estou e nunca aparecerem à hora de visita. Acho que o senhor do 19 dá biscoitinhos e não lhes pergunta pela vida. É, deve ser delicioso.




Agora empulgo sempre na mesma carruagem; penso que não queiras saber, mas eu digo que não é a mesma. Há acidentes esporádicos que nos mudam a vida. É o coração quem dorme e por quem se reza que volte do jardim comatório. De resto, não te quero ver. Mas pensa em mim, quando puderes, sim?




Ah, eu deveria ter gritado com todos os pulmões que me restam. Pelo menos, não vinha o coração sozinho.


(Imagem do filme Prozac Nation)

No Key


Aos portões do coração, correntes e cadeado. Só isso. Nada mais. Teias de aranha em cada veia. Alimento-me de moscas e nada de melhor me abraça ou cai no meu abraço/armadilha. Quem destruiu a esperança?


Aos portões do coração, ferro e fogo. O Antigamente de algo em que já não me vejo. A ideia de sorte reduzida a um azar do caraças. E consigo rir de tudo isto, rebentando as teias por um momento e abrindo-me de novo ao mundo. Aproveita para entrar. Mas não feches os portões. Daqui a nada estás a pedir para sair.


Há inválidos que apesar de tudo se movem. Há pessoas com tudo no sítio (talvez até demais) e não se mexem. Eu sou o intermédio - inválido em muita coisa, mas de vez em quando lá me mexo...devagar e quando não devo. E quando me quedo devia ter-me mexido, devia fazer-me à vida, abrir os portões. Mas para quê? Está tudo negro e podre lá fora, e tu não vens. De decrépito já basto eu. Não meto mais detritos cá dentro, nem junto os meus aos de fora. Deixa estar as teias. Não toques no cadeado. Não te rias.


Aos portões do coração, correntes e cadeado. Porque a chave desapareceu há muito. E há coisas que não interessam a ninguém.
Que assim seja.