Há coisas que, mais do que não entender, não fui definitivamente feita para entender. Porque é que as balanças são o objecto mais absurdo que existe se nunca há equilíbrio em nenhuma parte do mundo. Estendes-me as mãos. Apago o cigarro. Tenho veias e escrevo.
Existem dois tipos de pessoas, agrupadas segundo os elogios concretizados em horas de chuva e pedra e terra ou fogo para cima dos corpos. Existem dois tipos de cadáveres e não há outra maneira de dizer isto a não ser dizê-lo. Temos os mortos anorécticos e os bulímicos que morrem.
Existe uma constante ligação entre a comida e as palavras. Eu como palavras, tu comes palavras, ele não sei o que faz, mas de certeza que come palavras. Fora os anorécticos, comemos todos palavras. Não é uma ligação estreita, mas uma daquelas relações que dois estranhos têm ao tocarem-se todos os dias no mesmo caminho para o mesmo trabalho, sempre os mesmos, sem se falarem. Não deixa de ser uma relação.
Então nós ouvimos : Fulano deixou-nos hoje, com falta de palavras no estômago porque tinha a visão turva e achava que falava demais, deixando de falar tanto para que gostassem mais dele. Calou-se num dia, depois à noite também e, quando deu por ele, a língua já se enrolava de cada vez que se queria fazer à vida. Nunca procurou ajuda nem sabia linguagem gestual. Preferia morrer a dizer o que sentia. Morreu e deixa saudades.
Então nós ouvimos : Sincrano deixou-nos hoje, com imensas palavras que deitou ao mundo em horas erradas e silêncios indiscretos, porque não aguentou e encheu o que queria e não queria com letras que não as da sopa dentro de si , até vomitá-las quando calhou e sentir-se aliviado. Tornou-se um vício, uma doença e uma qualquer noção de bem - estar doentio. Preferia morrer a calar-se ou a falar quando lhe pediam, porque a sua noção de liberdade tinha a ver com as palavras e não com o pão ou com o voto. Morreu, deixa saudades em alguns.
Então eu penso, finalmente: que me faltam palavras constantemente para me exprimir perfeitamente e muitas vezes o que escrevo mal e porcamente me torna uma cadáver sem definição pré- definida. Efectivamente. Mas depois acontece que não páro de pensar e encontro soluções num frigorífico perto de mim, como o anúncio daquele filme em que se conta os dias até à sua estreia. Subitamente, sei porque como demais. É naquela relação de estranhos que está toda a minha noção de inspiração deficiente. Mal por mal, escrevo até conseguir encaixe.
(Imagem : Vincent van Gogh, Esqueleto fumando um cigarro, 1886)
4 comentários:
Ora bem...deixa que te diga que estás linda na foto. Memo gostosa. Se me apareces assim á frente, não sei se diga, não sei se faça, não sei se coise. xD
Quanto ao texto, voto no Sincrano. Mal por mal, que se deite tudo cá para fora, e quando não houver mais para dizer, que se espere o alívio. Ele há de chegar.
Quanto às palavras, sei o que vês nelas e percebo. Mortas ou não, são as tuas que movem muitas montanhas em mim. E se isso não faz delas fonte de vida...
Enfim, palavras são como o dinheiro. Quando morrermos fica cá tudo, por isso toca a usar =)
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Depois deste belo repasto de palavras com sabor acre-doce (o melhor dos sabores, nem muito doce nem muito acre), sento-me e escrevo mais palavras referentes às tuas, por elogio do teu trabalho ou apenas porque me encontrei em fragmentos das tuas palavras.
Sabes, acho que quando morrer - já não morremos todos? - vou ser um esqueleto médio, com sapos na barriga (as palavras que nunca disse) e um punhal nas costas (as palavras que disse a mais).
Quanto ao teu, será envolto por pétalas de girassois tenho a certeza. Mesmo na sombra das tuas palavras há luz.
Beijinhos enormes*******
as tuas palavras, são as tuas palavras.
sempre enigmáticas, sempre belas, no fundo... sempre tuas.
"Lembrei-me de o cego Ravn, avô de Ragnar, me dizer que os deuses gostavam da coragem e adoravam o desafio, mas odiavam a cobardia e desprezavam a incerteza.
- Estamos cá para os divertir - dissera-me Ravn -, nada mais, e se fizermos bem o nosso trabalho festejaremos com eles no final dos tempos."
Bernard Cornwell
Pois então que se fale e grite tudo o que refreamos dentro de nós com correntes de dinamite, como se de bestas se tratasse. Que os outros não gostem de nós. Que nos olhem de lado, nos sorriam e sussurrem enquanto nos afastamos. Mas seremos sempre mais leves por falar e o nosso nome passará a ser conhecido em vez de sermos apenas o "fulano" e a "fulana" que remaram um dia ninguém sabe muito bem para onde nem porquê. Festejaremos com os deuses até ao final dos tempos, apenas por termos tido a coragem de aceitar o seu desafio e falar o que habita em nós.
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