sexta-feira, 16 de maio de 2008

Pontilhismo

Ele mexe-lhe nos cabelos e sorri.

- Minha louca, como é que é possível? ...como- é- que- é- possível, diz-me.
- O quê?
- Como é possível saberes as coisas todas e de repente, desaprenderes-las?

Ela retribui o sorriso na primeira frase e depois desabafa amarga para um ponto abstracto do canto da sala.

- Tu não és justo... nunca cá estiveste. Nunca quando eu gritei só pelo teu nome, porque era o único que sabia de cor, e só haviam desculpas por todo o lado. Primeiro desculpas com desculpas e depois a palavra no singular, sem mais nada, ponto final. Desculpa no tablier do carro, desculpa no livro oferecido há dois anos, desculpa no Tu não percebes que eu só quero arranjar desculpa. Nunca cá estiveste quando eu dizia a toda a gente, Vocês não o conhecem, ele é bonzinho, ri-se quando eu falo de estrelas e nunca me faz perguntas desnecessárias, se eu estou bem, se como tudo, há quantas noites não durmo ou porque é que não paro de tremer. Ele não tem medos, disse-lhes eu, até me aperceber que eu era o único deles. Até eu começar a perceber o que dizia. Tu és tão injusto que nem te dás conta do quão alguma vez o foste.

Entretanto ele fica sério e permanece a olhar para ela. Depois olha pela janela e pergunta:

- Continuo sem perceber como é possível.
- Nem eu. Como é que é possível um sentimento ser para toda a vida e nunca mais acontecer? Morrer assim, aos pedaços e nunca mais aparecer, nem sequer em sonhos? Esquecer-me de mim e depois encontrar-me, mas para isso, ter de me esquecer de mim?
- Porque é que me dizes isso tudo agora?
- Porque tenho medo.
- Já não te lembras como é, pois não?
...
- Odeio-te. Boa noite.
(Imagem do Filme Uma canção de Amor)

2 comentários:

Susana disse...

A injustiça das palavras face ao desarrumo do coração. São armas poderosas. Pena que estejam direccionadas ao acaso e acabem por atingir quem menos se quer.

*

Shadow disse...

E de repente as ilusões de óptica fazem *puff* e tudo se torna claro como a água.
Mas para se desvelar os véus da ilusão e se reaprender a sentir cada grão de areia que cai como um segundo ganho é preciso caminhar e muito. Cair muito, tal como os bébés que ainda não sabem andar, mas vão saber.
E as palavras continuam a sair como uma cascata de emoções.

Beijinhos grandes*****