sexta-feira, 30 de maio de 2008

Carta de um louco


Querido(a) Júlio(a),

Precisava de uns dias fora de mim próprio, o colete está muito apertado. Não podes mandar alguém para aliviar este sufoco, só um bocadinho? Prometo que não fujo. Até porque se está bem na minha cela, fora ser um bocado fria e cheirar a mofo. Hoje esteve sol, e passei o dia sentado debaixo da janela, onde os raios batem com mais intensidade. Soube bem.


Agradecia também se tivesses por aí alguns soporíferos, daqueles que duram uns anos. São os zumbidos, aqueles zumbidos horríveis, mantém-me horas acordado. E a aranha do tecto teceu-me na almofada a frase “Não consigo dormir” a letras vermelhas. Ficou um bonito bordado, mas não está a ajudar nada e não quero que ela se sinta mal. Ontem pensei em matá-la. Sabes, se não gostasse tanto de a ouvir, já o tinha feito.


A goteira continua no centro da cela e recomenda-se. Há dias em que faz música linda – há bocado escrevi uma canção a ouvi-la e a acompanhar com a voz. Não canto bem, mas o que conta são as palavras. Mando-te a letra em anexo. Depois diz se gostas.


Outra coisa – nunca mais vi aquela mulher linda que vinha cá visitar-me de vez em quando. Ela contava histórias tão engraçadas, eu passava horas a ouvi-la e mais horas a pensar nas coisas que ela dizia e na forma como mexia os lábios e as mãos. Outro dia, enviei-lhe uma carta a pedi-la em casamento, e ela respondeu que se fosse louca, aceitaria. Podes dizer-me como enlouquecer uma pessoa? Eu sei que o segredo é a alma do negócio, mas podias abrir uma excepção de vez em quando. Tens que vir cá conhecê-la um dia em que ela apareça, tenho a certeza que me compreenderias. Mas não ma roubes. Ela é bonita demais para mim, mas tu nunca a entenderias como eu. E além disso, também não és o auge da beleza.

Enfim, aguardo resposta. Mas não demores como das outras vezes. Senão, já sabes como eu sou: começo a dar em doido.

3 comentários:

Shadow disse...

Querido louco,

Se puxar o cordelinho azul que tem ao pé do cotovelo esquerdo verá que se sentirá melhor. Depois coma duas bolachas de água e sal e fique sentado ao pé da janela ao pôr do sol.
Soporíferos não tenho, mas pode sempre ligar a televisão ou espreitar pela outra janela, sim a cinzenta. Ela irá mostrar-lhe a realidade do quotidiano. Se isso não o fizer dormir, nada o fará.
Adorei a letra que escreveu. Pensei que era um oceano e não uma goteira...
Quanto a essa mulher, não a roubarei de si, porque já lhe pertence. Está dentro de si, do seu olhar, a beleza dela. Assim sendo, só conheço umas pequenas rezas a um santo qualquer que já morreu para dar boa sorte.
E já agora, um segredo, ela já é louca.

Os melhores cumprimentos,
Júlia

Susana disse...

Como se enlouquece uma pessoa? Canta-se-lhe uma canção doce e recita-se um poema de amor. Depois mostra-se-lhe o cais e aponta-se para a bela embarcação velha que está aportada e convida-se-lhe as asas a voarem para o seu interior. Ninguém está habituado a demonstrações de amor maiores do que a própria vida. Se ela não for louca o suficiente para embarcar num navio para dois, então nem viva está e não é reconhecida no salão dos deuses ou nos banquetes dos vivos. Os deuses estão a rir-se do mundo que criaram, juntamente com quatro ou cinco loucos que guardam junto de si, apenas para o caso de se quererem apaixonar. Pois, assim como não há fumo sem fogo, não há amor sem loucura nem palavras sem sentido.
Ou então somos todos loucos que queremos dar a nossa loucura a alguém tão desesperadamente que nos esquecemos que somos a margem branca do papel. E que as nossas ondas são muito mais aventureiras do que todas as outras tempestades.
*

Sarocas disse...

Olá =) Descobri o teu blog, tive a ler (assim por alto) e gostei!
Gostei deste post...da parte "como é se enlouquece uma pessoa?".
Ah noutro dia encontrei um "poema" teu...de há 3 anos atrás...ri tanto a ler aquilo, fez-me lembrar as nossas aulas animadas a escrever "poema". Ehehe
Um beijinho